Confirmação da identidade de mulher encontrada morta em Barcelona há 20 anos ocorreu após um cruzamento internacional de dados conduzido pela Interpol.
O anúncio feito pela Interpol em 25 de setembro de 2025 — de que o corpo encontrado há duas décadas às margens de uma estrada de Barcelona pertencia à cidadã russa Liudmila Zavada — não é apenas um desfecho tardio de um caso policial. É, sobretudo, um retrato em alta definição do custo humano de um sistema monopolizado de justiça, migratório e de segurança pública que falha rotineiramente justamente naquilo que promete entregar: proteção e reparação. A história de Zavada, agora recomposta sob o nome que lhe foi roubado por 7.300 dias, ilustra como o desaparecimento de pessoas — especialmente mulheres imigrantes — não é apenas um problema de “polícia”, mas um sintoma de uma estrutura estatal inchada, lenta e destituída de incentivos para resolver crimes sem valor político imediato.
Desde o início, o caso foi marcado pela impotência característica de um sistema que opera sob monopólio: o corpo foi descoberto em julho de 2005 com sinais claros de movimentação recente, vestindo um conjunto rosa que lhe rendeu o apelido de “a mulher de rosa”. A autópsia apontou morte suspeita, mas sem identificação, sem parentes reclamando dentro do território nacional e sem pressão midiática suficiente, a investigação foi engolida pela pilha de processos que grassam nas delegacias europeias. A identificação só veio após a criação da Operação Identify Me, iniciativa da Interpol que, em 2023, passou a usar difusões negras — espécie de alerta internacional para cadáveres não identificados — e a cruzar digitalizações de impressões digitais com bancos de dados nacionais. Ou seja, demorou 18 anos para que o mesmo dado — impressões digitais — fosse efetivamente utilizado, algo que qualquer sistema competitivo de investigação teria feito em semanas.
O libertarianismo, ao contrário do senso comum, não defende a ausência de justiça; propõe sua desestatização, ou seja, a ruptura do monopólio estatal sobre investigação, segurança e reparação. Como destaca Murray Rothbard em Por uma Nova Liberdade (1973), o estado não é a única forma de organizar a justiça; é apenas a menos eficiente. A inércia de 20 anos observada no caso de Zavada é exatamente o tipo de falha sistêmica que o modelo rothbardiano prevê: quando o serviço de justiça é financiado por impostos compulsórios e não por clientes voluntários, o incentivo à eficiência desaparece. A demanda é virtualmente infinita, a oferta é burocrática e o resultado é o que se vê: 44 mulheres ainda não identificadas em seis países europeus, todas com idades entre 15 e 30 anos, todas mortas em circunstâncias suspeitas, todas reduzidas a fichas de arquivo.
(Sugestão de Pausa)
A tragédia de Liudmila Zavada também expõe o custo humano da regulação estatal da migração. Ela era russa, estava na Espanha sem qualquer registro visível à época e, como muitas migrantes, provavelmente transitava por zonas cinzentas do mercado formal — trabalhos sem contrato, moradias informais, relacionamentos instáveis. O tráfico de pessoas, mencionado pela Interpol como um dos fatores por trás do aumento de desaparecimentos, é alimentado justamente pela proibição estatal da livre circulação. Quando o estado impede a entrada legal de trabalhadores, ele não elimina a demanda por trabalho barato: apenas a empurra para a clandestinidade, onde não há registros, não há contratos e, portanto, não há rastreabilidade. A pessoa desaparece duas vezes: primeiro do mapa social, depois do mapa policial.
A abordagem libertária para o desaparecimento de pessoas não é utópica: é prática e já foi testada em setores paralelos. Empresas de seguro privado, por exemplo, operam há décadas com mecanismos de rastreamento, recompensa e investigação independente. Um exemplo é o sistema Lojack, criado na década de 1980 nos EUA, que permite o rastreamento de veículos roubados sem depender de polícia estatal. A empresa não espera 20 anos para agir: tem incentivo financeiro direto para resolver o caso em horas. Se o serviço de investigação fosse tratado como um bem econômico, como qualquer outro, a demanda por resolução de desaparecimentos geraria oferta especializada, competitiva e inovadora — e não a lentidão burocrática que enterrou Liudmila Zavada no anonimato por duas décadas.
A solução libertária para o problema dos desaparecimentos passa por três pilares: desburocratização da identidade, privatização da investigação e restituição monetária às vítimas. Primeiro, a identidade deve pertencer ao indivíduo, não ao estado. O uso de identidades descentralizadas, baseadas em blockchain e biometria controlada pelo usuário, permitiria que qualquer pessoa — independentemente de nacionalidade — pudesse ser rastreada, com consentimento, é claro, por empresas de localização contratadas por familiares ou seguradoras. Segundo, a investigação deve ser um serviço pago e contratado, como um plano de saúde ou um seguro de vida. Empresas especializadas competiriam por resolver casos com rapidez, pois seu lucro depende da eficiência. Terceiro, a restituição não deve vir do estado, mas do responsável pelo dano — ou de fundos privados de reparação, alimentados por contratos de seguro obrigatórios entre empreiteiros, empregadores e prestadores de serviço. Assim, o custo do desaparecimento seria internalizado pelo sistema, e não externalizado para o contribuinte.
A Operação Identify Me, apesar de celebrada como avanço, é apenas um remendo em uma estrutura podre. Ela existe não porque o estado tenha se tornado mais eficiente, mas porque a pressão internacional e o constrangimento público forçaram uma reação tardia. É o mesmo padrão observado no Brasil, onde o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas foi lançado apenas em agosto de 2025, após décadas de reivindicações de ONGs e familiares.
(Sugestão de Pausa)
A visão libertária também questiona o monopólio estatal sobre a informação genética. O cruzamento de DNA que identificou Zavada só foi possível porque a Turquia — país onde ela havia deixado impressões digitais ao solicitar visto — possuía um banco de dados nacional acessível. Mas por que esse cruzamento não foi feito em 2005? Porque não havia interesse econômico em fazê-lo. A Interpol não é uma empresa; não perde clientes por demorar 20 anos. Se o banco de dados fosse privado, operado por uma rede de laboratórios contratados por familiares ou seguradoras, a identificação seria demandada e paga na hora. O DNA não é caro; a burocracia é.
O pensador David D. Friedman, em A Máquina da Liberdade (1973), propõe que sistemas de justiça privada operariam como qualquer outro serviço de mercado: com concorrência, reputação e preço. A identificação de cadáveres não seria diferente. Empresas especializadas em forense contratariam laboratórios, bancos de dados genéticos e investigadores independentes. O custo seria assumido por familiares, seguradoras ou até por fundos de recompensa voluntária, abertos para doações. O caso de Zavada, por exemplo, poderia ter sido resolvido em meses se uma seguradora de vida — ou até uma empresa de transporte — tivesse interesse em evitar o prejuízo de reputação ou o pagamento de indenizações. O lucro é o melhor incentivo para a justiça, algo que o estado, por definição, desconhece.
Ainda há o problema da falta de registros migratórios confiáveis. Zavada estava na Espanha, mas não havia registro de entrada legal. Isso não significa que ela estivesse “ilegal”; significa que o sistema estatal de vistos e fronteiras a ignorou até mesmo após sua morte. Em um modelo libertário, a migração não é controlada por burocracias, mas por contratos privados de acolhimento. Empresas de transporte, hotéis, locadoras e empregadores seriam responsáveis por registrar a entrada e saída de pessoas — não para controlá-las, mas para proteger seus próprios interesses. Esses registros, armazenados de forma descentralizada e acessível apenas com autorização, poderiam ser usados para rastrear desaparecimentos sem depender de um passaporte ou visto. A tecnologia já existe; falta apenas a liberdade para usá-la.
A tragédia de Liudmila Zavada também revela o absurdo do monopólio estatal sobre a dor alheia. Por 20 anos, sua família na Rússia viveu na incerteza. Não recebeu notícias, não pôde enterrar a filha, não teve acesso ao corpo. Tudo porque o sistema estatal espanhol não tinha obrigação de responder. Em um modelo de justiça privada, a obrigação seria contratual. Se Zavada tivesse um seguro de vida ou um plano de localização familiar, a empresa teria responsabilidade civil por não localizá-la. A família poderia processar por inércia, e não apenas por erro. O Estado não pode ser processado por omissão; a iniciativa privada pode — e por isso funciona.
(Sugestão de Pausa)
A Operação Identify Me, ao identificar apenas três vítimas em dois anos, não é um sucesso: é um fracasso anunciado. São 44 mulheres ainda sem nome, 44 famílias sem resposta, 44 casos de negligência institucional. Em um mercado livre, uma única empresa com esse desempenho estaria falida. Na esfera estatal, é celebrada como avanço. A diferença é clara: o estado não compete; impõe. E impõe silêncio, lentidão e esquecimento.
A proposta libertária não é apenas teórica. Em partes do México, onde a polícia estatal foi cooptada pelo narcotráfico, familiares de desaparecidos contratam investigadores privados, financiados por vaquinhas e igrejas. Em São Paulo, grupos de busca independentes usam drones, cães e arqueologia forense para encontrar corpos em áreas ignoradas pela polícia. Essas iniciativas, ainda que marginais, já entregam resultados onde o estado falhou. O próprio Sinal Desaparecidos, citado na reportagem, é um serviço estatal que imita o formato privado: permite registros online, compartilhamento de dados e geolocalização. Por que então ainda depende de um boletim de ocorrência estatal? Porque o monopólio não permite concorrência. E sem concorrência, não há inovação.
A identidade é um bem. A justiça é um serviço. Mas nenhum deles deve ser monopolizado. Liudmila Zavada recuperou seu nome, mas não recuperou os 20 anos de silêncio impostos por um sistema que não tinha porque correr. Se queremos mudar essa realidade, precisamos tirar a justiça das mãos do estado e colocá-la nas mãos daqueles que têm algo a perder se ela falhar.
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c20e5e26d12o