A Sociedade da Neve: como o estado é incapaz de salvar a vida das pessoas

A Tragédia dos Andes poderia ter sido menos grave, se o estado não tivesse agido de forma tão negligente.

O filme “A Sociedade da Neve”, dirigido por Juan Antonio Bayona, já é uma sensação na Netflix, e também no circuito internacional de prêmios. As qualidades técnicas da obra são tão notáveis, que ela foi indicada ao Oscar em 2 categorias: Melhor Filme em Língua Estrangeira e Melhor Maquiagem. Agora, o filme se junta a várias realizações anteriores, que abordam a chamada “Tragédia dos Andes”, dentre os quais se destacam o filme “Os Sobreviventes dos Andes”, de 1976, e o filme “Vivos!”, de 1993. Sim, essa é uma história realmente impressionante, que pareceria mesmo uma obra de ficção, se não fosse terrivelmente real.

Trata-se do caso do Voo Fairchild FH-227D, da Força Aérea Uruguaia, que levava 40 passageiros e 5 tripulantes - 19 deles sendo membros da equipe de rugby Old Christians, de Montevidéu - com destino a Santiago, no Chile. Era o dia 12 de outubro de 1972. A previsão inicial era de que o voo sem escalas duraria cerca 3 horas e meia, mas as más condições climáticas tornaram a viagem bastante instável, desde os primeiros momentos.
Porém, após algumas poucas horas no ar, notícias de mau tempo
nas montanhas forçaram o piloto Julio Ferradas a aterrissar na antiga cidade
colonial de Mendoza, na Argentina, logo ao leste dos Andes. No dia seguinte, os passageiros aguardavam o horário da partida e não entendiam o porquê da demora, afinal, até às 13h ainda não havia informações sobre o vôo. A verdade é que os pilotos tinham uma decisão muito complicada para tomar. O boletim do tempo
daquela manhã advertia sobre uma certa turbulência na rota, mas depois de
falar com o piloto de um avião de carga que acabara de chegar de Santiago,
o piloto Ferradas estava confiante que o Fairchild podia sobrevoar o mau tempo com
segurança. O problema mais grave era a hora; já era começo da tarde e
até que os passageiros embarcassem e tudo estivesse acertado com os
funcionários do aeroporto já passaria das 14 horas. À tarde, o ar quente sobe das
colinas argentinas e se encontra com o ar gelado acima da linha de neve, gerando
uma instabilidade traiçoeira na atmosfera sobre as montanhas, o que é muito perigoso para um vôo. E os pilotos
sabiam que esse era o horário mais perigoso para sobrevoar os Andes. Não havia
como prever onde aquelas correntes iriam bater, e, se elas os
pegassem, o avião seria jogado de um lado para o outro como um
brinquedo. Para piorar a situação, eles não poderiam ficar parados em Mendoza pois a aeronave era
um Fairchild F-227 da Força Aérea Uruguaia.
E as leis da Argentina proibiam que um avião militar estrangeiro permanecesse
em solo argentino por mais de 24 horas. Uma burocracia inútil que certamente influenciou na segurança do vôo. Como o tempo estava se esgotando, os pilotos tinham que tomar uma decisão rápida: partir para Santiago e
enfrentar o céu vespertino e perigoso ou voar com o Fairchild de volta para o Uruguai e
acabar com o sonho daqueles jovens jogadores?
A essa altura os jovens passageiros já não aguentavam mais esperar e começaram a pressionar os pilotos zombando deles, dando a entender que não estavam fazendo o trabalho corretamente. Por motivos desconhecidos, os pilotos tomaram a decisão de prosseguir e o Fairchild decolou do aeroporto de Mendoza às 14h18.

As condições meteorológicas, que continuavam péssimas, confundiram os pilotos que, em determinado ponto, fizeram o avião descer mais do que era seguro. Naquele momento, eles estavam sobrevoando a Cordilheira dos Andes. O desastre foi desencadeado, então, no momento em que o avião se chocou com os picos de algumas montanhas.

Ainda no ar, a aeronave começou a se desfazer, perdendo as duas asas e a cauda. Nesse momento, com a abertura na fuselagem, vários passageiros acabaram sendo arremessados para fora do avião. Depois de cair de forma brusca, a aeronave aterrissou violentamente na neve, vindo a se chocar contra uma montanha. Quando o avião finalmente interrompeu sua queda, os sobreviventes do impacto conseguiram sair da fuselagem.

17 pessoas perderam a vida no impacto, ou nas primeiras horas que se sucederam ao evento. Os que sobreviveram, por sua vez, se descobriram em meio a um verdadeiro deserto de gelo - o Vale das Lágrimas, a quase 4 mil metros de altitude, em algum ponto próximo à fronteira da Argentina com o Chile. Nesse local completamente inóspito, as temperaturas se aproximam dos 40º C negativos, e há frequente incidência de ventos fortes. Sem roupas apropriados para aquela temperatura, os sobreviventes precisaram lidar, ainda, com a falta de água e comida, e também com a depressão.

Os desafios eram quase insuportáveis. E, para piorar, após alguns dias uma avalanche tirou a vida de mais 8 pessoas. Outras 4 pessoas ainda morreriam no decorrer dos dias seguintes. Durante uma semana, esses indivíduos repartiram alguns chocolates que foram encontrados entre as bagagens, mas essas provisões acabaram muito depressa. E, então, a fome começou a torturar os sobreviventes. Depois de tentarem, em vão, comer outros objetos como o couro das malas, aquelas pessoas precisaram recorrer à carne dos mortos - que estava devidamente preservada pelo gelo. É difícil sequer imaginar o que seria vivenciar uma situação do tipo.

Enquanto os sobreviventes lutavam contra o gelo e contra a fome, as buscas pelo avião começaram a ser realizadas pelas autoridades de 3 países. Contudo, como o avião era branco, era um grande desafio difícil encontrá-lo em meio à neve. Decorridos apenas 8 dias de buscas, que se mostraram infrutíferas, os passageiros foram declarados mortos e as tentativas foram canceladas. O pior de tudo foi o fato de que os sobreviventes ouviram a notícia do cancelamento das buscas por meio de um pequeno rádio transmissor, que fora encontrado por eles em meio aos destroços do avião.

A situação, agora, era ainda mais desesperadora. Porém, um dos sobreviventes reagiu, a fim de elevar o moral do combalido grupo. Gustavo Nicolich teria afirmado, para os demais, que aquela era, afinal de contas, uma boa notícia, porque isso significava que os sobreviventes sairiam dali por conta própria. E, de fato, foi exatamente isso o que eles fizeram. Após tentativas falhas de sair do local, decidiram que o melhor era esperar até que as temperaturas aumentassem um pouco, já que não tinham roupas nem equipamentos próprios para andar na neve. Imagine ter que andar o dia inteiro sob ventos fortes com os pés na neve sem calçados apropriados e depois dormir a noite sem abrigo, é um desafio dos grandes. Por conta disso, após quase dois meses procurando por uma solução, 3 dos sobreviventes decidiram buscar ajuda. Após um certo tempo perceberam que o caminho seria mais longo do que pensavam e decidiram mandar um deles de volta ao avião para economizar comida. Assim, após 10 dias de caminhada, Nando Parrado e Roberto Canessa conseguiram encontrar ajuda.
Nos dias 22 e 23 de dezembro, 72 dias após o acidente, o grupo de 16 sobreviventes foi finalmente resgatado de helicóptero. Esses sobreviventes foram tratados como heróis, e os atos de canibalismo em momento algum foram questionados; afinal de contas, quem não agiria assim numa situação dessas? Porém, essa situação criou, no mínimo, uma saia-justa para as autoridades responsáveis pelo resgate, já que elas condenaram à morte dezenas de pessoas, por sua falta de empenho; e as que sobreviveram, o fizeram apesar dos órgãos estatais, contando apenas com sua própria tenacidade.

De fato, esse caso representa bem o funcionamento do estado. A máquina estatal, supostamente, existe para beneficiar a população. Para tanto, agências reguladoras e órgãos de controle são criados - tudo em prol do povo, naturalmente. Desses entes burocráticos, espera-se a excelência na preservação da vida humana, e que todos os esforços sejam movidos, quando se trata de salvar vidas inocentes. Contudo, a realidade aponta para o lado oposto: órgãos burocráticos são, apenas, pura burocracia.

Não são raros os casos em que agências de controle de saúde são responsáveis por prejuízos à saúde da população; ou em que órgãos de gestão de dados são responsáveis pelo vazamento de informações sensíveis. E também não são nada escassas as situações em que entidades estatais parecem fazer corpo mole, mesmo em temas tão sensíveis, quanto a sobrevivência de pessoas no meio da Cordilheira dos Andes.

E se você acha que estamos forçando a barra nessa análise, saiba que um caso muito semelhante à Tragédia dos Andes aconteceu aqui, em terras tupiniquins, no ano de 1960. Trata-se do caso Milton Pardi - que leva o nome do piloto envolvido na tragédia em questão. Pilotando um avião Cessna 140, Milton e seu cunhado, Antônio Augusto Gonçalves, precisaram fazer um pouso forçado numa clareira, na selva boliviana - era o dia 29 de agosto daquele ano. Os dois homens conseguiram sobreviver por alguns dias, em meio à selva, enquanto esperavam por resgate. Porém, Antônio, já delirando por conta da fome e da sede, acabou por beber combustível do avião, falecendo logo em seguida. Milton, porém, conseguiu sobreviver por quase 70 dias, quando finalmente morreu de inanição.

Enquanto os homens padeciam no meio da floresta, sua família travava uma batalha burocrática junto aos órgãos estatais brasileiros, para que algo fosse feito em favor dos possíveis sobreviventes. Contudo, esses familiares foram jogados de um lado para outro, sem que as autoridades se interessassem em resolver o problema. A própria Força Aérea Brasileira fez corpo mole nessa situação, enquanto que a burocracia fez com que dias preciosos fossem perdidos. Quando as buscas finalmente começaram, já era tarde demais. Os dois corpos só foram encontrados na véspera do Natal daquele ano, quase 2 meses após a morte de Milton. A sua tragédia é bastante conhecida, porque seus dias de inferno na selva amazônica foram documentados pelo próprio Milton em um diário.

É claro que, neste momento, alguém pode levantar aquela conhecida objeção: e como esse tipo de situação se daria, numa sociedade libertária? Bem, como em qualquer outro caso, os serviços de busca por aviões desaparecidos ou acidentados seriam fornecidos por empresas privadas. Estas poderiam ser as próprias companhias aéreas, caso elas optassem por dispor de um departamento com essa finalidade, ou simplesmente poderiam ser terceirizadas - tudo estipulado em contrato.

Nesse tipo de cenário, a tendência seria de que as empresas se dedicassem o máximo possível para resolver o caso, a fim de manter sua reputação. Imagine o seguinte cenário: um avião cai no meio de montanhas cobertas de neve, e a empresa privada responsável pelas buscas encerra os serviços 8 dias após iniciá-los, sem dar qualquer resposta satisfatória para a família das possíveis vítimas. Isso, por si só, já seria o suficiente para que possíveis clientes ficassem receosos de fazer negócio com essa empresa, no futuro.

Agora, imagine que, 70 dias depois, um grupo de sobreviventes do voo em questão apareça, após atravessar quilômetros de gelo e neve, afirmando existirem outros 14 sobreviventes aguardando resgate. O que aconteceria com a reputação de uma empresa de resgate que encerrasse as buscas em tão pouco tempo, mantendo pessoas vivas presas no meio do gelo, apenas para ser surpreendida com o aparecimento de alguns sobreviventes, que decidiram agir por conta própria? Certamente, essa empresa estaria arruinada, expulsa do mercado para todo o sempre. Contudo, isso não acontece com o estado. A má vontade e o desinteresse das agências estatais nunca são punidos como deveriam; na verdade, as coisas sempre continuam acontecendo da mesma forma.

Após a tragédia e o subsequente resgate, os sobreviventes do voo 571 conseguiram levar uma vida produtiva e bem-sucedida. Esse grupo, hoje, conta com médicos, empresários, executivos, produtores agropecuários, arquitetos, dentre outros. É fácil entender porque todos eles venceram na vida: quem conseguiu sobreviver àquelas condições atrozes no meio dos Andes, certamente tira de letra os desafios da vida cotidiana. Os sobreviventes dos Andes são verdadeiros campeões, porque eles venceram a luta contra o frio, a fome, o desespero, a angústia e, principalmente, contra a ineficiência do estado.

Referências:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Voo_For%C3%A7a_A%C3%A9rea_Uruguaia_571

https://issuu.com/revistasociallight/docs/jornal_gazeta_de_rio_preto_-_edi__o_928_-_30_de_ag

https://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Milton_Verdi