No Nepal, dezenove pessoas perderam suas vidas por exigir o direito de se comunicar. No Brasil, não há sangue nas ruas — mas há perfis bloqueados, multas e processos. A guerra contra a liberdade digital é global, só muda a forma da repressão
Dezenove jovens mortos. Mais de cem feridos. Tudo porque queriam o direito básico de se comunicar livremente. Em 8 de setembro de 2025, as ruas de Katmandu se tornaram palco de uma tragédia que expôs o que todos fingiam não saber: governos modernos estão dispostos a matar pela manutenção do controle informacional.
O governo nepalês justificou o massacre alegando que Facebook, YouTube e WhatsApp não atenderam ao prazo de registro obrigatório. Sete dias. Era isso que as empresas tinham para cumprir exigências vagas e potencialmente invasivas junto ao Ministério de Comunicações e Tecnologia da Informação. Quem acredita que isso foi sobre burocracia também acredita que regulamentação governamental protege o consumidor.
Esse é o manual básico do autoritarismo moderno: criar obstáculos intransponíveis, chamá-los de "regulamentação" e depois se fazer de surpreso quando ninguém consegue cumpri-los. É o mesmo truque usado por governos autoritários do mundo todo — desde Maduro na Venezuela até nossos próprios tribunais superiores aqui no Brasil.
E veja o padrão histórico: o Nepal já havia proibido o TikTok em novembro de 2023, e liberado em agosto de 2024 e banido o Telegram em julho de 2024. Essa dança das cadeiras entre proibições e liberações mostra que nunca foi sobre "segurança cibernética" — foi sempre sobre controle político momentâneo.
O padrão é sempre o mesmo: primeiro você criminaliza, depois "oferece" uma forma "legal" de fazer a mesma coisa, mas com tantas burocracias que se torna impossível na prática. No Nepal, era registro em sete dias. No Brasil, são audiências de conciliação que nunca acontecem e recursos que nunca são analisados.
Os manifestantes nepaleses eram jovens da Geração Z — pessoas que nasceram conectadas, que veem o acesso à internet não como concessão estatal, mas como direito natural à comunicação, expressão e associação voluntária. Para essa geração, Facebook, YouTube e WhatsApp não são entretenimento — são ferramentas essenciais para comunicação, comércio e participação na sociedade civil.
E qual foi a resposta do estado? Canhões de água, gás lacrimogêneo, balas de borracha e, finalmente, munição letal. Dezenove mortos por quererem tuitar. Se isso não expõe a verdadeira natureza coercitiva do poder estatal, nada mais vai expor.
Essa escalada brutal revela uma mentalidade que interpreta qualquer resistência como ameaça existencial ao monopólio do poder. Quando jovens saem às ruas pedindo o direito de se comunicar, e o estado responde com balas, fica óbvio que estamos diante de uma instituição que prefere governar através da força e do medo.
Mas aqui no Brasil, nós somos mais "civilizados". Não matamos manifestantes nas ruas — nós só processamos quem questiona ministros, bloqueamos perfis de influenciadores e cobramos multas de 50 mil reais por usar VPN. Muito mais sofisticado, não é mesmo?
O governo nepalês vendeu suas medidas como combate a "fraudes online, lavagem de dinheiro e crimes cibernéticos", alegando que usuários com identidades falsas perturbavam a "harmonia social". É o argumento clássico: sacrificar liberdade individual em nome de uma suposta segurança coletiva.
Mas essa lógica é completamente furada. Proibir plataformas de comunicação para combater crimes digitais é como fechar todas as estradas para prevenir acidentes de trânsito. Os criminosos sempre encontram meios alternativos — frequentemente mais difíceis de monitorar que as plataformas convencionais. O livre mercado e a concorrência entre plataformas criam incentivos naturais para desenvolver melhores sistemas de segurança.
Mais preocupante ainda é a vagueza das acusações. "Harmonia social" e "atos maliciosos" são termos propositalmente imprecisos, que permitem interpretações arbitrárias para criminalizar qualquer forma de dissidência ou concorrência de ideias. É a mesma retórica usada por regimes autoritários mundo afora.
Enquanto o Nepal usava a força bruta, o Brasil desenvolveu o que podemos chamar de "autoritarismo processual". Em vez de atirar em manifestantes, nós criamos inquéritos eternos. Em vez de proibir plataformas abertamente, nós as "regulamentamos" até a morte.
O bloqueio do X por Alexandre de Moraes durou 39 dias — coincidindo estrategicamente com o período pré-eleitoral municipal. E não foi só bloqueio: foi multa de 50 mil reais para qualquer pessoa que tentasse acessar a plataforma. A diferença é que em vez de usar balas, usamos inquéritos sigilosos, prisões arbitrárias e confisco de propriedade privada.
O inquérito das fake news, instaurado em março de 2019 e prorrogado indefinidamente, concentra na mesma pessoa os papéis de "vítima, investigador, acusador e julgador". É uma aberração que viola princípios básicos do devido processo legal e da separação de poderes — conceitos fundamentais para limitar o poder governamental.
Alexandre de Moraes não precisa de tanques. Ele tem algo muito mais poderoso: a ilusão de legalidade. Cada decisão autoritária vem embrulhada em linguagem jurídica complexa, cheia de "considerandos" e "fundamentações" que fazem tudo parecer muito técnico e impessoal.
O STF já rejeitou sistematicamente 39 recursos contra decisões de bloqueio de perfis em redes sociais, criando uma jurisprudência que legitima a censura. Grandes plataformas como Twitter, Instagram, Facebook, Telegram, YouTube e TikTok já alegaram publicamente que essas medidas constituem "ato de censura prévia" — mas suas objeções foram ignoradas.
A violência institucional no Brasil é mais sutil, porém igualmente devastadora para os direitos individuais. Influenciadores como Monark tiveram redes sociais bloqueadas e foram proibidos de "publicar desinformação" — termo cuja definição permanece propositalmente vaga. Jovens tiveram propriedades invadidas por criticar ministros. Empresários viram bens confiscados sem devido processo.
O Wall Street Journal chegou a acusar Moraes de liderar um "golpe de estado" no STF, comparando seus métodos aos de "autocratas do século XXI". A observação é pertinente: enquanto ditaduras clássicas usavam tanques, as novas formas de autoritarismo usam togas.
Para quem perde emprego por ter conta bloqueada, para a mãe ameaçada de prisão por não controlar as redes da filha adolescente, ou para o jornalista impedido de exercer sua profissão, a violação dos direitos individuais é igualmente real — só que institucionalizada.
No Nepal, a Suprema Corte legitimou a censura em 17 de agosto, determinando que plataformas online devem ser registradas para "monitorar desinformação". Essa decisão judicial forneceu cobertura legal para o executivo implementar a censura.
No Brasil, o STF legitima a censura com decisões "técnicas" sobre fake news e ataques à democracia. Em ambos os casos, o judiciário removeu os freios e contrapesos que deveriam proteger direitos fundamentais contra o abuso de poder.
Quando tribunais endossam restrições à liberdade de expressão sob pretextos vagos como "combate à desinformação", não estão protegendo a democracia — estão facilitando o crescimento do poder estatal sobre a vida individual. Organizações internacionais se manifestaram sobre o Nepal, mas onde estão as manifestações sobre o Brasil?
Os eventos no Nepal não ocorrem isoladamente. Fazem parte de uma tendência global: do bloqueio da internet em Myanmar às restrições na Índia, passando pelas tentativas de regulamentação de redes sociais ao redor do mundo. O padrão é consistente — governos descobriram que controlar informação é fundamental para expandir e manter poder.
O que torna o Nepal especialmente chocante é a brutalidade da resposta. Raramente vemos um governo usar força letal tão desproporcional contra manifestantes que simplesmente exigiam o direito natural de se comunicar. Mas será que é tão diferente assim do que acontece no Brasil?
Aqui está o que poucos percebem: para governos autoritários, a "crise" que prometem resolver é o combustível que os mantém no poder. No Nepal, cada crime cibernético real justifica mais censura. No Brasil, cada "fake news" real justifica mais inquéritos. A existência do problema legitima a "solução" — que sempre envolve mais poder para quem já detém o monopólio da força.
É por isso que essas medidas nunca funcionam de verdade. Não é incompetência — é design. Um sistema que realmente resolvesse os problemas se tornaria desnecessário. E que burocrata quer perder sua razão de existir?
Há um incentivo perverso para que a insegurança continue. Um ambiente inseguro justifica mais regulamentações, mais verbas, mais controle. Quando a "proteção" estatal falha, o estado se apresenta como ainda mais necessário. É o clássico problema do agente que cria demanda para seus próprios serviços.
Defensores da censura apresentam uma falsa escolha: ou aceitar regulamentação invasiva, ou viver no "vale-tudo" digital. Essa é uma distorção deliberada que ignora soluções baseadas em liberdade individual e mercado.
Existem múltiplas formas de abordar problemas legítimos sem coerção estatal: mecanismos de mercado, reputação, autorregulação, transparência algorítmica, educação digital, aplicação direcionada de leis existentes contra fraudes e crimes. Soluções que emergem da cooperação voluntária e abordam preocupações específicas sem sacrificar direitos fundamentais.
A experiência histórica mostra que governos que adquirem poderes de censura inevitavelmente os expandem. O que começa como "combate à desinformação" vira silenciamento de críticas legítimas ao poder constituído. É a natureza da coerção institucional: sempre tende a crescer.
Talvez o mais perturbador seja a diferença na reação internacional. Quando o Nepal matou 19 manifestantes, houve condenações imediatas. Quando o Brasil implementou censura sofisticada, a resposta foi morna.
Apenas recentemente os EUA aplicaram sanções contra Moraes — anos após o início das práticas autoritárias. A comunidade internacional parece mais confortável condenando brutalidade óbvia que enfrentando autoritarismos institucionais sofisticados.
Essa disparidade incentiva autocratas a serem mais sofisticados, não menos repressivos.
O Nepal nos ensinou que quando você remove o direito básico de comunicação, algumas pessoas resistem até a morte por esse direito. O Brasil nos ensina que você pode fazer a mesma coisa sem sangue, desde que tenha sofisticação processual.
Mas no final, o resultado é idêntico: silêncio, medo, obediência.
Os 19 mortos de Katmandu e os milhares de brasileiros censurados são vítimas da mesma guerra contra a liberdade individual. A diferença é que uns tombaram sob balas, outros sob carimbos judiciais.
A questão não é se governos têm "direito" de "regular" plataformas. A questão é por que aceitar que qualquer instituição coercitiva decida unilateralmente o que você pode ver, ler, falar ou pensar. Em uma sociedade livre, essa escolha caberia aos próprios indivíduos.
Em uma era onde a comunicação digital é fundamental para participação econômica, social e política, censurar redes sociais equivale a excluir cidadãos da vida em sociedade. E quando governos matam ou processam para manter essa exclusão, a liberdade individual deixa de existir.
O que resta é apenas a ilusão de legitimidade — mantida por força bruta no Nepal e por violência institucional no Brasil.
Escolha seu veneno. Mas não se iluda pensando que existe diferença fundamental entre balas e decretos judiciais. No fim das contas, coerção estatal é coerção estatal — independentemente de vir vestida de uniforme militar ou toga judicial.
Os jovens mortos nas ruas de Katmandu não foram apenas vítimas da brutalidade policial. Foram mártires da liberdade digital. E sua morte serve como aviso sobre o futuro que nos espera se continuarmos permitindo que governos tratem conectividade como privilégio concedido pelo estado, não como direito natural do indivíduo.
Em ambos os casos — Nepal e Brasil — governa-se através da força e do medo, não do consentimento dos governados. A diferença é apenas estética.
https://www.reuters.com/business/media-telecom/nineteen-killed-nepal-gen-z-protest-over-social-media-ban-corruption-2025-09-08/
https://www.cbsnews.com/news/brazil-supreme-court-lifts-ban-social-media-site-x-elon-musk/
https://freedomforum.org.np/nepal-bans-telegram/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Inqu%C3%A9rito_das_Fake_News
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/moraes-proibe-uso-de-vpn-para-acessar-x-sob-pena-de-multa-de-r-50-mil/
https://kathmandupost.com/national/2025/08/17/top-court-says-all-social-media-online-sites-must-register