FICÇÃO AMERICANA: o filme que detona a lacração botando um espelho na cara dela

Existem várias definições de hipocrisia. Duas delas são: exigir dos outros o que você não faz ou fazer o que você condena.

O ano de 2016 foi um marco na história da maior premiação do cinema. Naquele ano, todos os indicados nas categorias de ator e atriz, tanto principais quanto coadjuvantes, eram brancos, sendo que houve bons filmes com protagonistas negros no mesmo ano. A hashtag #OscarSoWhite (“Oscar Branco Demais”) gerou um movimento por mais inclusão tanto na Academia quanto nos próprios filmes. Na época, a comissão julgadora era, em sua maioria, formada por homens brancos de certa idade. Desde então, o percentual de mulheres na comissão julgadora subiu de 25% para 33%, o número de não brancos de 10% para 19%. No ano passado, foram admitidos 819 membros de 68 países, de modo a descentralizar as decisões.

Essas mudanças na comissão julgadora têm surtido efeito. Em 2019, o filme mexicano Roma levou quatro estatuaetas e quase ganhou o Oscar de Melhor Filme. Em 2022, Parasita foi o primeiro filme estrangeiro em outro idioma, além do inglês, a ganhar o Oscar de Melhor Filme. Em 2023, o prêmio principal foi para Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo, um filme sobre uma família asiática (que nos Estados Unidos é uma minoria) cuja antagonista é uma adolescente lésbica.

Não há nada de errado nas tentativas da comissão julgadora de ser mais inclusiva, muito pelo contrário. O problema é querer ditar como os estúdios deveriam trabalhar. Não satisfeita em impor medidas de inclusão a si mesma, a Academia também estabeleceu critérios de inclusão para os filmes se candidatarem ao Oscar. Minorias devem ser incluídas tanto na equipe quanto na história. Para concorrer, o tema do filme é obrigado a se centrar em um desses grupos: mulheres, etnias pouco representadas, pessoas LGBTQIA+ ou deficientes. Esses critérios passaram a valer a partir desse ano. Confesso que não sei onde Oppenheimer, vencedor do prêmio principal esse ano, se encaixa nesses critérios. Talvez a comissão julgadora tenha forçado a barra e considerado o protagonista judeu, embora o próprio na vida real não se considerasse.

Mas o tema desse vídeo é outro filme, que não ganhou nenhum prêmio, mas cuja indicação já é uma vitória para quem está farto da cultura woke. Ficção Americana cumpre, com louvor, os critérios da Academia. Mas, tal como um Cavalo de Tróia, o filme mergulha fundo na lacração para destruí-la por dentro.

Seguem alguns spoilers. Vou tentar não comprometer a experiência, mas é recomendado assistir ao filme antes de continuar o vídeo.

A cena inicial já é um tapa na cara. O professor de literatura Thelonius Ellison está dando uma aula em uma faculdade e escreve a palavra “nigger” no quadro, uma palavra sem tradução exata e de caráter ofensivo para negros, algo como “crioulo”. Uma aluna branca de cabelo colorido – sim, o filme apela para clichês o tempo todo, acostume-se – diz que aquilo é ofensivo. O professor, que é negro, responde: “se eu consegui superar isso, você também consegue”. A aluna sai da sala chorando.

Alegando que o professor anda muito estressado, a faculdade lhe concede uma licença para visitar sua família em Boston e aproveitar para conferir uma feira literária na mesma cidade. Nessa feira, a escritora mais badalada é Sintara Golden, uma negra que estudou numa faculdade de elite e trabalhou em uma editora de livros chique, mas que escreve sobre a vida de negros periféricos. O título do seu livro tem erros de grafia propositais para parecer “mais popular”.

Se isso parece absurdo demais para acontecer na vida real, lembremos que em 2011 o governo Dilma Rousseff distribuiu cartilhas nas escolas sobre “preconceito linguístico”, as quais ensinavam que uma construção verbal como “nós vai” não deve ser considerada errada, pois isso seria um ato de discriminação com o falante. Sendo que, na verdade, o verdadeiro preconceito é considerar alguém incapaz de falar algo simples como “nós vamos”.

O sucesso desse livro revolta Thelonius, que também tem uma carreira como escritor mas nunca foi bem sucedido comercialmente, sendo considerado rebuscado demais. Seu agente diz que suas histórias não são “negras o suficiente” para o público. Ele responde: “eu nem acredito nesse negócio de raça”. Nessa cena, enquanto fala ao telefone, Thelonius faz sinal para um táxi que passa direto, pegando um passageiro branco alguns metros adiante. Lembra quando eu disse que esse filme joga clichês na cara de propósito?

A vida do protagonista começa a ruir quando ele reencontra sua família. A irmã dele morre alguns dias depois do encontro. Ela era a única dos três filhos que sustentava a mãe, que logo é acometida por Alzheimer. Thelonius e seu irmão precisam assumir a responsabilidade pela mãe doente, mas Cliff, o irmão de Thelonius, faliu depois de um divórcio.

Sem ter o que fazer durante a licença, Thelonius dá vazão à sua indignação escrevendo um livro com o objetivo de debochar do mercado editorial, uma história sobre negros cheia de estereótipos, com o protagonista sendo um criminoso morto pela polícia no final. Até seu agente duvida que aquela porcaria vai ser aceita por qualquer editora, mas atende o pedido de Thelonius para enviá-la mesmo assim, só pela zoeira.

O livro acaba se revelando uma grande promessa comercial, recebendo uma proposta de 750 mil dólares de uma editora. Thelonius se vê tentado a aceitar o dinheiro para sustentar o caro tratamento de sua mãe, mas sente vergonha ao se imaginar reconhecido como autor daquilo, preferindo falar com a editora por telefone em vez de videoconferência. Ao telefone, ele cria um personagem para assumir a autoria do livro, alterando a voz e falando de maneira estereotipada, inventando que não pode revelar sua identidade porque é um fugitivo da polícia. Essa ficção paralela aumenta ainda mais o hype sobre o livro, que recebe uma oferta de 4 milhões para que se faça um filme.

Por ironia do destino, Thelonius recebe uma proposta para integrar a comissão julgadora de um prêmio literário, e um dos livros que precisaria julgar é justamente o seu. Como conveniência de roteiro pouca é bobagem, uma de suas colegas nessa comissão é Sintara, aquela escritora a quem ele conheceu na feira literária e cujo livro desprezou.

Como última tentativa de sabotar seu livro e ao mesmo tempo preservar sua dignidade, em outra ligação com a editora, Thelonius sugere que o título do seu livro, até então “Minha Pafologia” – assim mesmo, escrito errado – seja alterado para “Porra”. Seu agente surta, achando que ele ficou maluco. Mas para surpresa de zero pessoas, a ideia é acatada, e aumenta ainda mais o sucesso. O livro vende 300 mil cópias só na primeira tiragem.

Durante uma reunião da comissão julgadora que Thelonius integra, tanto ele quanto sua colega negra concordam que o livro “Porra” é um lixo e não seria sequer digno de concorrer a um prêmio. Há de se ressaltar a genialidade dos diálogos do diretor Cord Jefferson, um dos grandes atrativos do filme. Durante uma conversa particular entre os dois, Sintara diz que "Porra" é o tipo de livro que os críticos adjetivam como "necessário", mas não como "bem-escrito". Essa linha serve como uma crítica a muitas das produções artísticas atuais, de qualidade questionável, mas valorizada por seu caráter militante. Thelonius rebate dizendo que os livros da própria Sintara têm essa característica, e ela responde que só está atendendo às demandas do mercado. Thelonius insiste, afirmando que traficantes usam do mesmo discurso, e aí minha simpatia por Sintara aumenta, porque ela defende que drogas nem deveriam ser proibidas. É uma posição coerente, dado que as drogas que os dois escreveram estão circulando livremente.

Voltando à reunião da comissão, os outros membros, todos brancos, consideram "Porra" um livro excelente e votam nele como vencedor do prêmio. Inclusive um deles, que parecia um conservador e teve uma discussão com a líder do grupo sobre a redução de recursos para a polícia, disse que o livro era "necessário", como Sintara havia previsto. Há uma sutileza nessa cena: os críticos brancos ressaltam o quanto é importante dar voz aos negros, mas ignoram completamente a opinião dos negros presentes na sala. Essa é uma situação recorrente no filme: brancos falando de como é ser negro. Os donos da editora, o diretor de cinema que comprou os direitos do livro, os críticos que o premiaram e até a aluna lacradora da cena inicial são todos brancos que se julgam especialistas na vida dos negros.

Apesar de jogar clichês o tempo todo de maneira caricata, o filme também se redime desfazendo-os na própria família do protagonista. Todos os membros são bem-sucedidos profissionalmente. Cliff é um cirurgião usuário de drogas tanto quanto muitos de seus colegas de jaleco, e seu vício nada tem a ver com sua origem. Thelonius tem problemas comuns à maioria das pessoas: manter um relacionamento amoroso, pagar as despesas de um parente gravemente doente, aguentar pessoas chatas no trabalho, sofrer por não ser reconhecido por seu talento e ter que abrir mão de seus princípios por um sustento. A única personagem negra próxima de um estereótipo é a empregada doméstica, mas no geral a imagem do negro periférico está só na imaginação dos brancos.

O racismo era uma praga em vias de extinção graças ao desenvolvimento econômico, pois o livre mercado é o único sistema que permite que pessoas atendam às necessidades umas das outras a despeito de suas diferenças. Como disse Jeffrey Tucker: “Você é perfeitamente livre para ser fanático, racista e avesso a todas as outras visões religiosas e diferentes estilos de vida. Porém, quando se trata de melhorar sua vida, você prefere lidar com um médico judeu a ter um ataque cardíaco, almoçar em um restaurante de comidas árabes, contratar um imigrante mexicano para reformar seu banheiro, ouvir sua banda pop favorita integrada por negros, e assim por diante. Gradualmente, sob estas condições, o modo de agir primitivo e tribalista começa a diminuir.”

Milton Friedman em seu clássico "Capitalismo e Liberdade" também ressalta o quanto o racismo é contraproducente. Se você não atende negros, está perdendo dinheiro. Se não contrata negros, pode estar abrindo mão do melhor funcionário. Se não comprar de negros, pode estar dispensando o melhor produto ou serviço. Em um sistema de trocas, as convicções pessoais das pessoas importam menos do que sua capacidade de satisfazer as necessidades alheias, e é isso que promove a paz entre os diferentes.

Voltando ao Oscar, embora a premiação desse ano tenha trazido escabrosidades como "Barbie", que não passa de uma propaganda de duas horas, houve um respiro em relação à cultura woke que tem dominado o cinema americano. O filme vencedor do prêmio principal conta a história de um homem branco, e o filme de negros entre os indicados vai com os dois pés no peito da lacração. Uma comissão julgadora na qual todos os membros se parecem tende a ter um conhecimento restrito sobre toda a produção artística a ser julgada. Entretanto, a arte deve ser deixada livre para se destacar por seus méritos, independentemente da cor de quem está na tela ou da posição ideológica que o filme defende.

Referências:

https://brasil.elpais.com/cultura/2020-09-09/oscar-adota-criterios-minimos-de-inclusao-em-busca-de-premiacao-mais-diversificada.html

https://mises.org.br/article/2784/para-uma-sociedade-evoluir-e-necessario-que-ela-seja-homogenea